21 agosto 2007

#Contos Iniciados (aquele do cotidiano)

[ Primeiro Ponto ]

Disseram-me na rua para eu olhar para frente pois não acharia nada perdido olhando pro chão. Pensei: "mas o que tem essa mulher para se meter entre eu e meus pensamentos?". Ignorei sua (im)posição quanto a minha postura de andar olhando para baixo e continuei meu caminho tentando lembrar que música cantarolava antes de ser interrompido... Lembrei em seguida que tal música não existia, então resolvi inventar uma e saí murmurando qualquer coisa num ritmo que provavelmente alguém já compôs.

A música falava de homens que resolvem seus problemas com lápis e caderno. E não, não estou falando de advogados ou contadores. Homens. Apenas homens. Esses seres que compram cigarros em bancas de jornais e revistas em livrarias que sirvam um bom café. Havia algo sobre ser livre, direitos humanos e "aproveitar o momento" no refrão, mas parei por aí antes que acabasse tornando esse instante em algo político e sem ideologia sustentável.

Quando me vejo estou franzindo a testa e pensando com mais seriedade no assunto e no que eu pretendia com isso. Pensei sobre o que eu queria realmente falar, o que me traria entusiasmo para cantarolar essa canção mais vezes que apenas hoje. E acreditei que queria falar sobre coisas simples, cotidiano, rotina que fosse, algo leve e suficientemente clichê para poder soar agradável e familiar, assim não correria riscos.

Logo alguns chavões emergiam em minha mente, procurei papel e caneta em meus bolsos e rapidamente achei um rascunho amassado para começar a cômpor. O rapaz do caldo-de-cana me emprestou seu lápis de pau que lhe enfeitava o cabelo entre a orelha, e fiquei alí sentado num ponto de ônibus a organizar meus primeiros versos e rimas.
...

Não pensei ser tão difícil somar dois e dois sem obter cinco como resposta. É como uma antítese constante que me segue por todas as esquinas e sempre que nos encontramos estou olhando para o chão, contando passos e encarando meu all star surrado, quando as oportunidades estão me mirando, atirando gritos nos meus ouvidos e eu cego, mudo o lado da calçada, troco os pés e lavo minhas mãos.

Sendo omisso e inventando músicas tolas para que outros possam me acompanhar. Sendo um Roberto dos anos '80, um rei e um terrível, mas amado por todos. Quando na verdade poderia estar sendo um Caetano do século 21, falar de sexo e ser rock'n'roll.

Mas vamos aos fatos. Jamais serei o que meus dedos não conseguem tocar, tampouco um instrumento de cordas antigas que emitem sempre um mesmo som. Não serei Clarice e o Pessoa continuará sendo alguém a se admirar. Não se pode fazer música assim, sem fardos... ou fatos, sei lá.
...

Como cheguei até aqui? há poucos minutos haviam homens e seus problemas resolvidos, cadernetas e caldo de cana. Agora restam dúvidas e poucas oitavas.
Minha canção rabiscada na cabeça, guardei no bolso e ele, furado, deixou cair no chão...

[ Segundo Ponto ]

Espetou o dedo numa rosa e pensou dormir como num conto de fadas. Mas o milênio já havia mudado e sua profissão não lhe reservara espinho qualquer.
Acordou chutando o criado mudo como se sua raiva fosse dele. O relógio não despertara e seu atraso estava marcado nos ponteiros. Não era novidade ultrapassar a tolerância no ponto de seu trabalho.

Com os olhos ainda se abrindo, ligou sua máquina e pôs seu fone de ouvido...
- Central de Atendimento ao Consumidor, Marília, Bom Dia.
Indicador no mute e mãos por dentro dos óculos ignoravam as reclamações rotineiras dos desconhecidos estressados que garantiam o alguel todos os meses.
Começou a pensar no que mudaria se ela mesma mudasse...
- Não senhora, nós não devolvemos o dinheiro por uma falha na costura de sua roupa, mas podemos efetuar a troca. Qual o número da nota fiscal, por gentileza?
... e se toda vã filosofia do mundo contido nos livros de alto-ajuda que ela lê-ra fosse apenas um meio fácil de conseguir dinheiro. Pensou também que com todo conhecimento acumulado - e que de nada adiantou - dos livros que devorou ela também já poderia se arriscar a escrever suas "dicas de como viver bem e ser uma pessoa melhor". Talvez ganhasse dinheiro... talvez o fracasso fosse ainda maior....
- Tudo bem senhora, você não será a única na fila do PROCOM por causa disso. Boa tarde.

Um brusco movimento de mãos arrancando seu fone de ouvido junto ao diadema de plástico fez com que a realidade evitada a todo custo tomasse conta da P.A.(*) novamente.
...

Antes das 14h na rua novamente e com uma carta de demissão na mão, Marília fez um caminho mais longo até sua casa e parou naquela praça próximo ao metrô para observar as pessoas passarem. Com um prestigio no colo e sua carta dobrada no bolso traseiro, ela ficou mais duas horas nesse costume juvenil e nostálgico de observar as pessoas em seus afazeres e suas rotinas apressadas e foi para casa com um sorriso de quem acaba de acordar de um conto infantil.

(*)P.A. - Posto de Atendimento


Tenho por princípios
Nunca fechar portas
Mas como mantê-las abertas
O tempo todo
Se em certos dias o vento
Quer derrubar tudo?...
[Sudoeste de Adriana Calcanhotto]

5 comentários:

Anônimo disse...

Uns Versos Quaisquer
Fernando Pessoa)

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo . . .
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos . . .

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja . . .

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo . . .

Porque o que importa é que já nada importe . . .
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos . . . Tudo é o mesmo . . . Eis o momento . . .
Sejamo-lo . . . Pra quê o pensamento?

Pra desejar... desejar que DEUS esteja sempre c/ vc!!!
hj não tive oportunidade de dizer... T AMO MUITO!!!

FOXX disse...

adorei tudo
e tow morrendo de saudades

Filipe Ferreira disse...

Gostei sobretudo dessa segunda parte, principalmente em relação ao que se passou na cabeça da Marília. Gostei do efeito que vc criou de fluxo de consciência interrompido eventualmente pelas respostas mecânicas dada etc.
Mto bom.
Inté.

Anônimo disse...

Gostei muito dos dois textos. Ambos tem um poco de Clarisse e muito de você.
bjo

Escrevendo pra esquecer disse...

Continuo com saudade tua.