18 setembro 2007

#Contos Iniciados (aquele sobre mudanças)

A pele que envolvia meu lençol naquela noite não era mais a tua no dia seguinte.
Ainda estava escuro e eu só pensava em café da manhã e Mario Quintana. Combinações perigosas quando se está sensível a brisa qualquer que lhe bagunce os cabelos. Composições famosas na voz de Bethânia fazendo sucesso no rádio do bar da esquina, pão de queijo na mão das crianças e idosos sentados em bancos de praças me faziam sentir como se houvesse acordado décadas antes, voltado a um tempo o qual sinto falta sem nunca tê-lo vivido, e eu estava quase satisfeito...

... mas a porta do banheiro bateu e eu acordei abrupta e rapidamente com um sorriso no rosto para te recepcionar, dar as boas vindas e pedir desculpas pelo acontecido anteriormente, nada daquilo importava e o nosso desejo ainda era maior. Acordei assustado mas, ainda assim, disposto a dizer o que engoli durante os sete meses que tentamos ter um relacionamento sincero fora da cama, a expor os sentimentos que são ditos verbalmente apenas uma vez na vida porque foram feitos para serem entendidos com o olhar, mesmo que você não consiga decifrar os meus através das minhas lentes de aro grosso... e eu diria tudo isso se a imagem fosse tua. Se não encontrasse apenas um espelho enconstado ao box enquanto nosso siamês corria pela porta.
Não era você.
E ao olhar o espelho não tive certeza se era eu.
Olhei ao redor e o quarto não parecia ser o nosso... as paredes sempre foram palha?
O criado-mudo, os lençois, os chinelos. Nada parecia estar no lugar... melhor apagar o abajur.

Seis da manhã e não sinto cheiro algum vindo da sala, sua caneca e seu café-com-leite não estavam suando no jornal, mas ainda haviam peças de roupas suas por toda parte. Não tive coragem de juntá-las em caixas, gosto do seu cheiro impregnando a casa, me sinto mais confortável em lugares familiares e nossa casa sem seu cheiro seria qualquer outro lugar onde eu estaria sozinho.
Na rua as nove, e tudo começava a subtrair. Lojas antigas estavam fechadas, a padaria do centro, a locadora em que você me apresentou James Dean, o shopping que abrigava nossos ócios, tudo fugiu da minha rotina tão bruscamente que todo dia parecia ser domingo e eu era quem estava fechado para balanço.

...

E agora?
Contei todos os meus "segredos de liquidificador", bebi o vinho que guardei para aquele jantar que nunca se concretizou, mas a comida ainda está morna e já não tenho fome.
O problema não é mais sua ausência, é a impossibilidade do nós.


"Old incisions refusing to stay
Like sun through the trees on a cloudy day."
[ Without You - Silverchair ]

5 comentários:

FOXX disse...

Ainda estava escuro e eu só pensava em café da manhã e Mario Quintana. Combinações perigosas quando se está sensível a brisa qualquer que lhe bagunce os cabelos.


lindo

perfeito!

Filipe Ferreira disse...

Gostei muito do texto. Atribuí a algumas passagens alguma carga simbólica que não se você de fato quis criar.
Mas eu interpretei e eu interpreto o que quiser, desde que consiga provarf que é possível, não concorda?
Gosto dessa possibilidade que a precariedade da linguagem oferece. É caótica e encantadora.

be-atriz disse...

adoro toda essa descrição.
e os cheiros, sempre.

novos aromas me embriagam, e meu domingo tornou-se mais que apenas uma cama e uma tv...
(vide futura foto. rsrs.)

te adoro.
saudades.
:*

Escrevendo pra esquecer disse...

Talvez tenhas percebido que desde sempre desejei me arriscar, foi o que fiz e nunca me estranhei com o que li nem com o que tentei ver, tenho ceratocome sabe, meus olhos sempre tentam me enganar, então canceriano que sou, medroso, preferi pelo seguro, me fixei no teu escrito. Por mais que as palavras tenham muitos significados, sons e entonações eu me sinto mais seguro guiando-me em você por delas. Não, eu não me encostei em coluna alguma, eu trouxe minha própria cadeira, me sentei e me senti em casa, não precisa se preocupar eu não gosto de café mesmo, eu estou bem assim. Não vi, também não procurei porta alguma, mas quando for pra sair farei questão que me conduzas.

Sabe o que fiquei pensando neste teu último conto iniciado, quando a gente percebe a “impossibilidade do nós” já estamos mais pra lá do que pra cá, mais pro final que pro começo, mais pra redenção do que pro purgatório, pelo menos eu acho...

Pois é, quando chegou momento do The Future? ficar no passado muito mudou aqui, principalmente a “impossibilidade do nós”, eu e minhas tentativas de algo que fosse parecido com poesia, secara a fonte e a vontade, até pensei que fosse o the end. Agora estou tentando me adaptar a uma nova medicação, uma nova forma, algo menos eu, talvez.

Também tive receio que vc não voltasse... fico feliz que voltou.

Abraços todos os meus. NÃO SUMA!

Anônimo disse...

Perfeito mesmo!!! Por alguns meses (7???) pensei te conhecer... +++ as mudanças (sempre favoráveis, mesmo que contestemos)me mostraram q não... não te conheço, isso pode ser ÓTIMO, pq existe sempre a possibilidade de aprendizado na IMPOSSIBILIDADE DE NÓS.

BJS ETERNOS!