06 setembro 2013

Híbrido de Olhos Claros

"É preciso começar de alguma maneira..."

Preservo as aspas pois não me parece minha a afirmação, tenho certeza de que a ouvi em algum lugar, passei os olhos por ela, mas não lembrarei onde.
Poderia ter sido por uma simples vírgula, dois pontos como nos ensinou Clarice em um de seus romances, uma interjeição...
Era preciso apenas um trecho, uma passagem qualquer da vida dele que nunca seria mais uma, nem tampouco uma qualquer.

Contradições.


(...)

Acordava cedo todos os dias, tomava seu suco com as laranjas que ele mesmo comprara na feira de sábado, saía rumo ao trabalho... mas trabalho já não havia. Há meses não havia. E ainda assim eu teimava em esquecer. Na verdade eu queria era lembrar... E ele lembrava. E é dele que eu preciso falar.

- Bom dia seu José.


Repetia religiosamente o cumprimento ao encontrar o zelador no térreo e se esforçava em sempre alternar os nomes, por não se dar ao trabalho de perguntar. Ele achava que uma hora acertaria e reconheceria num olhar de surpresa.


No caminho do trabalho ia fazendo listas do que era preciso melhorar...
- Preciso acordar mais cedo;
- Não deveria dormir tão tarde;
- Tenho que voltar pra academia;
- Preciso renovar minha carta de habilitação;
- E o meu carro hein? Será que consigo comprar até ano que vem?

É engraçado narrar isso... essas listas são mais que planos não realizados, é o diário que ele nunca escreve. São desejos bobos de uma rotina que podia ser mais interessante, mais desafiadora, mais bonita, que podia ser, por vezes, simplesmente mais! Às vezes acho que ele pensa assim...

E há um item que volta e meia o assalta pelas manhãs, num folheto colado na madrugada em um poste qualquer do centro, num comentário ou numa foto de rede social...

"Eu podia ir embora."

Mas pra onde? Como? Quando?

Ele não sabe, mas anseia, deseja. Ele trocaria seu nariz vermelho dos fins de semana por um par de asas... de um Pombo Correio, quem sabe, para poder saber o caminho de volta quando falta sentisse, mas com um canto bonito de pássaro que pudesse ecoar e deixar sua marca onde quer que ele fosse.

É isso. Um híbrido de olhos claros.

(...)

Eu podia estar aqui falando em mim, floreando uma história minha, criando detalhes narscisitas, mas não deixei de fazê-lo.
Estou alí do lado como observador constante, me inserindo nessa rotina, doando minhas laranjas, meus meses sem trabalho e criando uma estória nova, uma estória inventada.

Hoje, quando me perguntam o que sinto por ele, eu não sei dizer.
Falar em amor, em paixão, em desejo é tão fácil, até mesmo tão banal as vezes...

O que eu posso dizer é que quando penso nele eu penso em mar, eu penso em pôr-do-sol, eu penso brisa, eu tenho vontade de cantar uma música que eu gosto, eu penso num livro que me deu prazer em ler, eu penso num filme que gostaria de rever com ele, eu penso em sair por ai dançando sem vergonha de parecer ridículo, eu penso numa rede, em ninar no seu balanço, eu penso em me balançar e me perder, eu não penso em adormecer, mesmo dormindo eu só penso em acordar, em abrir os olhos, em mergulhar... me sinto um menino, me sinto um homem, um bicho, humano...

E eu penso e sinto tudo isso de uma só vez, todas essas linhas de palavras soltas contidas num nome que, pronunciado, desencandeia todas essas sensações em milésimos de segundos.

Se ele tem um nome?
Ele tem... tem sim... mas aprendi com uma canção em proteger esse nome por amor... não em um codinome qualquer, mas dos lábios pra dentro.

(...)

Ainda não me recordo de onde vem a frase inicial, sei apenas que era preciso começar de alguma maneira... era preciso começar...
Se vai durar?
O quanto nos permitirem.... e já será muito bom, pois seja o tempo que for, será pouco, pois vivemos uma eternidade todos os dias.


[Versão não definitiva do texto. Rascunho 2]



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